jueves, 12 de marzo de 2009

Viagem ao Rio Grande do Sul

Auguste de Saint-Hilare, traduzido por Adroaldo Mesquita da Costa

trecho do Capítulo I...Porto Alegre, 21 de julho de 1820

"Porto Alegre, sede da Capitania do Rio Grande do Sul, residência do general e do ouvidor, está situada em aprazível posição, sobre uma península formada por uma colina que avança na direção norte-sudeste, sobre a Lagoa dos Patos. Esta Lagoa mede sessenta léguas de comprimento, tem, em sua origem, os nomes de Lagoa de Viamão ou Lagoa de Porto Alegre. Estende-se, a princípio, de norte a sul, suas águas de uma correnteza sensível são, ordinariamente, doces, numa extensão de trinta léguas. A lagoa deve sua origem a quatro rios navegáveis, que reúnem águas em frente de Porto Alegre e que, divididos em sua embocadura, num grande número de braços, formam um labirinto de ilhas; três desses rios, o Gravataí, que é o mais oriental, o Rio dos Sinos e o Rio Caí, vêm do norte, nascem na Serra Geral e têm pequeno curso. O quarto rio, de nome Jacuí ou Guaíba, é muito maior que os outros; vem do oeste e recebe em seu curso numerosos afluentes.

A cidade de Porto Alegre se eleva em anfiteatro, sobre um dos lados da colina de que já falei, voltado para noroeste. Compõe-se de três longas ruas principais, que começam um pouco aquém da península, no continente, estende-se, em todo comprimento, paralelamente à lagoa, sendo atravessado por outras ruas muito mais curtas, traçadas sobre o declive da colina. Várias dessas ruas transversais são calçadas; outras só em parte, mas todas em muito mau estado. Na chamada Rua da Praia, que é a mais próxima da lagoa, existe, por quase toda parte, defronte de cada grupo de casas, uma calçada feita de lages diante da qual são colocados, de distância em distância, marcos estreitos bastante altos.



As casas de Porto Alegre são cobertas de telhas pintadas de branco em sua parte anterior, construídas em tijolo sobre alicerces de pedra e bem conservadas; a maior parte possui sacadas; são em geral, maiores que as das outras cidades do interior do Brasil e muitas possuem um andar além do térreo; outras têm mesmo dois.







A Rua da Praia, a única comercial, é extremamente movimentada. Nela se encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros, carregando fardos. É provida de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de oficinas de várias profissões. Quase a igual distância desta rua há um grande cais que avança para a lagoa, e à qual se tem acesso por uma larga ponte de madeira de aproximadamente cem passos de comprimento, guarnecida de peitoris e sustentada por pilares de pedra. As mercadorias, que aí se descarregam, são recebidas na extremidade dessa ponte, debaixo de um armazém de vinte e três passos de largura por trinta de comprimento, sustentado sobre oito pilastras de pedra, em que se apóiam outras de madeira. A vista desse cais seria de um belo efeito para a cidade, se não fosse prejudicada pela construção, à entrada da ponte, de um edifício muito pesado e rústico que mede quarenta passos de comprimento, para servir de alfândega.





Uma das três grandes ruas, chamada Rua da Igreja (atual Rua Duque de Caxias) , estende-se sobre o cume da colina. É aí que se acham os três principais edifícios da cidade: o Palácio, a Igreja Paroquial e o Palácio da Justiça. Estão construídos em alinhamento, um ao pé do outro, voltados para o noroeste, e do outro lado da rua, em frente, levantaram apenas um muro de apoio para não prejudicar um dos mais belos panoramas existentes. Abaixo desse muro, sobre a encosta da colina, uma praça, infelizmente muito irregular, cujo terreno é sustentado por pedras que mal afloram à superfície, formando canteiros dispostos em losangos.





Além da Rua da Igreja, do Palácio, dos edifícios próximos a essa praça e das casas construídas mais abaixo, avista-se a lagoa, que pode ter a mesma largura do Loire em Orleans, rodeada de ilhas baixas, cobertas de vegetação pouco crescida. Entre elas, vêem-se serpentear os braços dos quatro rios que mencionei acima, mas é impossível determinar, exatamente, a que rio pertencem porque, antes de chegar à lagoa, eles se cruzam e se confundem. As águas que correm na direção do Gravataí, na extremidade mais oriental da lagoa, aí chegam descrevendo uma imensa curva (imagem), apresentanndo-se como um belo rio, distinto dos demais. Um pouco mais ao norte, outras águas formam uma grande bacia, compreendida entre duas faixas de terra, que ambas se curvam em semicírculo deixando em sua extremidade só uma abertura muito estreita. Alguns trechos dos rios mostram-se por trás das ilhas, e dessa mistura de água e terra resulta um conjunto muito agradável. Para completar esse quadro, acrescentei que o horizonte é limitado pelos cumes da Serra Geral, que toma a direção de leste para o norte e se perde à distância.



Desejando-se apreciar uma paisagem diferente, mas também cheia de belezas, basta, logo que se chega ao ponto mais alto da cidade, na Rua da Igreja, voltar-se para o lado oposto àquele que acabo de descrever.



A parte da lagoa que banha a península do lado sudoeste forma uma grande enseada de forma semi-elíptica, de águas geralmente tranqüilas. Um vale, largo e pouco profundo, limita a parte mais baixa da enseada; nas margens o Conde Figueira mandou plantar, recentemente, uma aléia muito larga de figueiras selvagens que, futuramente, constituirá aprazível lugar para passeios. Mais adiante, o terreno se acha coberto de árvores e principalmente de arbustos; vêem-se, aqui e ali, casas de campo; mais além, afinal, estendem-se vastos gramados cobertos de bosques, capões e filas de arbustos copados que desenham os contornos irregulares de grande número de sebes. A lagoa se estende obliquamente para o sul, orlada de colinas pouco elevadas; confunde-se no horizonte com as nuvens e ao longe avista-se um rochedo esbranquiçado que surge no meio das águas (atualmente conhecida como "Ilha do Presídio"). O panorama que se observa diante dos olhos, do lado noroeste, é mais aprazível e mais animado; alguma coisa de calmo que convida ao sonho.

Os edifícios construídos no topo da colina não apresentam, afora isso, outra beleza senão a de sua situação; pode-se mesmo afirmar que eles não estão à altura da importância da cidade e riqueza da Capitania.

O Palácio do Governador não passa de uma construção comum, de um só andar e nove varandas na frente. Internamente mal dividido, não possui uma peça onde se possa receber uma sociedade tão numerosa como a que se reuniria facilmente em Porto Alegre. O Palácio da Justiça é ainda muito mais mesquinho; só tem o pavimento térreo. A Igreja Paroquial, cujo acesso se faz por uma escadaria exterior, tem duas torres desiguais; é clara e bem ornamentada, com dois altares, além dos que se encontram na capela-mor; mas é muito pequena, pois contei apenas quarenta passos da capela-mor até a porta.

Os outros edifícios públicos de Porto Alegre são menos importantes do que esses que venho descrevendo. Além da igreja paroquial, vêem-se mais duas outra ainda não terminadas. Numa, contudo, celebram missa: a outra, ainda não coberta, está com sua construção paralisada. A Casa da Câmara não passa de um pavimento térreo (Casa Rosa). Um particular, desde que medianamente rico, não quereria habitá-la. Aqui, a cadeia não faz parte do edifício da Casa da Câmara. Há duas muito pequenas, localizadas à entrada da cidade. Na extremidade da Rua da Praia, duas construções vizinhas servem de armazéns para a marinha, de depósito de armas, e onde se instalaram, para as necessidades das tropas, oficinas de armeiro, carreiro e seleiro. Admirei a ordem, o arranjo; poderia mesmo dizer, a elegância, reinante na sala destinada às armas de reserva. Do lado da lagoa, onde esses prédios têm fachada, cada um apresenta uma espécie de corpo principal alongado, só de pavimento téreo e em cuja extremidade há um pavilhão de um andar. Entre os dois edifícios, há um espaço considerável a que corresponde, em plano mais elevado, a Igreja das Dores (imagens 1, 2), uma daquelas de que já falei. Defronte à igreja, além dos armazéns, e portanto, próximo à lagoa, vê-se uma coluna encimada por um globo, que indica ser a cidade sede de uma comarca (imagem). Diante dela construiu-se um duplo quebra-mar de pedra, destinado a servir de cais para dois armazéns. Esse conjunto formaria um belo efeito, se a igreja estivesse concluída, se o terreno existente entre ela e os dois armazéns tivesse sido nivelado e se estes, embora construídos sob o mesmo modelo, não apresentassem diferenças chocantes. Fora da cidade, sobre um dos pontos mais elevados da colina, onde ela se acha construída, iniciou-se a contrução de um hospital (Hospital Santa Casa), cujas proporções são tão grandes, que provavelmente não seja terminado tão cedo; mas a sua posição foi escolhida com rara felicidade, porque é bem arejado, bastante afastado da cidade, para evitar contágios; ao mesmo tempo, muito próximo para que os doentes fiquem ao alcance de socorro de qualquer espécie; se escolheram o lado noroeste da península para aí construírem a cidade, foi porque os navios só por este lado podem ancorar. Entretanto, há, também, casas no lado oposto da colina porém esparsas e mal alinhadas, entremeadas de terrenos baldios, na maior parte pequenas, mal construídas e quase todas habitadas por gente pobre. Desde que aqui me encontro, já contei cerca de vinte a vinte e cinco embarcações no porto, e asseguram-me que há, muitas vezes, até cinqüenta. Podem entrar no porto sumacas, brigues e embarcações de três mastros.

Situada à margem de uma lagoa, que se estende até o mar, podendo, ao mesmo tempo, comunicar-se com o interior por vários rios navegáveis, cuja foz fica diante de seu porto, a cidade de Porto Alegre deve, necessariamente, tornar-se em breve, rica e florescente. Fundada há cerca de cinqüenta anos, já conta uma população de dez a doze mil almas, e alguém, aí residente há dezessete anos, me informa que nesse espaço de tempo, ela aumentou em dois terços. Pode ser considerada como principal entreposto da Capitania, sobretudo das regiões que ficam ao noroeste. Os negociantes adquirem quase todas as mercadorias no Rio de Janeiro e as distribuem nos arredores da cidade; em troca exportam, principalmente, couros, trigo e carne seca; é também de Porto Alegre que saem todas as conservas exportadas da província. O rápido aumento da população fez com que os terrenos se tornassem mais valorizados aqui do que nas cidades do interior; poucas casas possuem jardins e muitas não têm sequer quintal; daí um grave inconveniente de atirarem à rua todo o lixo, tornando-as imundas. As encruzilhadas, os terrenos baldios e, principalmente, as margens da lagoa são entulhadas de sujeira; os habitantes só bebem água da lagoa e, continuamente, vêem-se negros encher seus cântaros no mesmo lugar em que outros acabam de lavar as mais emporcalhadas vasilhas.

Sobre a população de Porto Alegre já disse que se compõe, principalmente, de brancos, em geral, grandes, bem constituídos, de bela tez; acrescentei que as mulheres são muito claras, coradas e várias delas muito bonitas, não se furtam a conversar com homens, possuindo maneiras delicadas e um tom distinto. Aqui não há tanta vida social como nas cidades européias; porém há muito mais do que em outras cidades do Brasil.

São freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras tocam, com maestria o violão e o piano, instrumento este desconhecido no interior, por causa das dificuldades de seu transporte. É na Rua da Praia , próximo ao cais, que fica o mercado; nele vendem-se laranjas, amendoim, carne seca, pão, feixes de lenha e legumes, principalmente couve. Como no Rio de Janeiro, as vendedoras são negras; algumas vendem acocoradas junto à mercadoria; outras possuem barracas, dispostas desordenadamente. Vêem-se, também, em Porto Alegre, negros que mascateiam fazendas pelas ruas. Atualmente vendem muito o fruto da araucária, a que chamam pinhão, nome que se dá, na Europa, às sementes de pinheiro. Usam-no cozido ou ligeiramente assado, ao chá ou entre as refeições, sendo freqüente presentear com ele os amigos.

Porto Alegre, 26 de julho - Parece que seguirei amanhã com o conde para o Rio Grande. Levarei comigo somente José Mariano; Firmiano e Laruotte seguirão pela lagoa, com minha bagagem. Quanto ao negro Manoel, a quem eu pagava desde Curitiba, sem que me fosse de utilidade alguma, e do qual tenho suportado, com tamanha paciência, os excessivos melindres, resolveu deixar-me no justo momento em que podia prestar algum serviço, pois que devia conduzir, nesta viagem, duas mulas carregadas de malas. O único motivo que me alegou foi o de que desejava voltar à sua terra. Reduzi, por isso, minha bagagem a duas malas, que poderão ser levadas por um dos animais do conde, conduzido por um empregado de seu ajudante de campo. Esta viagem me contraria mais do que posso dizê-lo. Devemos ir muito depressa; chegaremos tarde e partiremos cedo; não gozarei de nenhuma liberdade; nada poderei fazer além deste diário.

Com o imprestável José Mariano, estarei à mercê de toda gente e não saberei o que será feito de minha bagagem. Afora isso, é preciso que eu deixe aqui quase toda minha bagagem com Laroutte e Firmiano, empregados, também, sem nenhuma experiência. Não sei quando poderão embarcar, sendo muito provável que eu me demore muito mais tempo no Rio Grande, à espera deles, desprevenido de tudo e sem saber que resolução tomar.

Porto Alegre, 27 de julho - Não partiremos hoje, como era esperado, porque choveu durante todo o dia; passa-se o tempo, nada faço e esta viagem se prolonga mais do que desejava.

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